segunda-feira, junho 15, 2009

Democracia na escola

Quero compartilhar com os leitores do blog a reportagem "O que é democracia na escola?", publicada na edição 146 da Revista Educação.
Um abraço a todos,
Carmen.

O que é democracia na escola?
Escolas que se autoproclamam democráticas revalorizam a ideia de liberdade do educando e acirram um debate antigo sobre o lugar do professor na educação
Valéria Hartt

Estudante na escola Summerhill em 1969 (Foto: Hulton Archive / Getty Images)

Em 1959, o escocês Alexander Sutherland Neil lançava pela Hart Publishing a primeira edição de Summerhill (Summerhill: a radical approach to child rearing) e surpreendia o mundo ao descrever a experiência de uma escola inglesa, fundada por ele ainda nos anos 20, como a própria antítese da pedagogia tradicional. Em seu lugar, propunha uma escola voltada à construção da felicidade, em que as crianças não fossem obrigadas a frequentar as aulas e a prática da democracia participativa se constituísse num direito assegurado: professores, alunos e funcionários deveriam ter a mesma voz na tomada de decisões.

Quase um século depois, Summerhill resiste ao tempo e é possivelmente o exemplo mais categórico de uma proposta educacional partilhada hoje por centenas de escolas espalhadas pelo mundo. Elas se autoproclamam democráticas e, em comum, defendem a participação de todos na gestão escolar, além de conferir ao aluno autonomia para gerir seu próprio currículo. A ideia é polêmica e ainda hoje suscita debates calorosos.

"A partir dessa proposta, a escola passou a se mobilizar em torno de questões que transcendem o compromisso com o aprender. Os desafios se avolumaram e, hoje, parece que a escola tem pouco tempo para ser apenas escola", diz Lisandre Maria Castello Branco, professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae.

Inspiração
Summerhill se mantém fiel às ideias de seu fundador, que há 87 anos pregava contra a pedagogia tradicional. Na escola britânica, nenhum adulto impõe sua autoridade à criança. Hoje administrada pela filha de Neil, Zoë Readhead, a escola tem 73 alunos matriculados e, sem falsa modéstia, se compara a um farol a iluminar a pedagogia centrada no estudante. Sob sua inspiração, muitas propostas se desenharam, com diferentes contornos.

"O diálogo que tipifica a educação democrática vem do espírito de Martin Buber, da antropologia filosófica; do romantismo de Rousseau e dos ensinamentos de John Dewey, combinando modelos inspirados em Carl Rogers; na Comunidade Justa defendida por Lawrence Kohlberg e na escola Summerhill, de Alexander Neil", sintetiza o israelense Yaacov Hecht, fundador e diretor do Instituto para Educação Democrática (The Institute for Democratic Education- IDE), com sede em Tel-Aviv.

É nesse caldeirão de novas propostas pedagógicas que se inscrevem também as práticas da Escola da Ponte, a bola da vez entre as boas referências mundiais da educação. Prova de que a designação de "democrática" não passa de um rótulo a abrigar conotações teóricas e práticas bem distintas. Há muitas faces entre as proclamadas e apontadas como tal, que não se opõem tão radicalmente à pedagogia tradicional.

Mas o que importa saber é uma questão central: ao mudar o eixo - do ensinar para o aprender, da centralidade no professor à centralidade no aluno - teria a escola desvendado as melhores práticas pedagógicas? Estaria o acesso ao conhecimento realmente mais democrático?

A infiltração de novas ideias no cotidiano escolar é o ponto de partida para um processo considerado por muitos como o esvaziamento do ato educativo, compreendido aqui como a transmissão do legado cultural acumulado pela humanidade.

Pedagogia crítica
Dermeval Saviani, da Universidade de Campinas, é um crítico conhecido da pedagogia nova e de suas herdeiras nos meios educacionais, entre elas as que se identificam como democráticas. É também voz ativa da pedagogia crítica, corrente que ajudou a fundar. Ele lembra que a cartilha do escolanovismo difundiu-se rapidamente, despertando natural simpatia ao assumir uma roupagem progressista e emancipadora, em oposição à pedagogia burguesa, de inspiração liberal. Não por acaso, encontrou terreno fértil nos ares da redemocratização dos anos 80, quando o discurso da centralidade no educando ganhou nova tônica. "(...) O ideário escolanovista, tendo sido amplamente difundido, penetrou na cabeça dos educadores, acabando por gerar consequências também nas amplas redes escolares oficiais organizadas na forma tradicional", escreveu Saviani em Escola e Democracia, livro que em 2008 atingiu sua 40ª edição, 25 anos depois de seu lançamento, em 1983. E conclui:

"(...) tais consequências foram mais negativas que positivas uma vez que, provocando o afrouxamento da disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos, acabou a absorção do escolanovismo pelos professores por rebaixar o nível de ensino destinado às camadas populares, as quais muito frequentemente têm na escola o único meio de acesso ao conhecimento elaborado".

Polêmica, a crítica formulada por Saviani ainda hoje divide os meios educacionais. Há quem julgue difícil afirmar, mesmo com os dados de pesquisa existentes, em que grau e em que extensão o "escolanovismo" (e suas várias derivações) penetrou ou penetra na cabeça e nas práticas dos professores que atuam na linha de frente do sistema escolar brasileiro. A visão chega a parecer reducionista. Para explicar o fracasso da escola pública e as raízes do aligeiramento e rebaixamento do nível de ensino, melhor parece apoiar-se em análises mais globalizantes. Significa, por exemplo, considerar os objetivos postulados para a escola, o financiamento público da educação, o sistema de formação, a remuneração e as condições de trabalho dos professores.



Conflito geracional
Por outro lado, há quem identifique razões de caráter cultural que não estão dissociadas da vida escolar. Muito ao contrário, ajudam a explicar muitas das dinâmicas no interior da escola. Uma delas aponta para o padrão de relações entre adultos e gerações mais novas, que se modificou de forma acentuada pelo menos nas últimas cinco décadas. Chegou a se decompor, o que, seguramente, tem reflexos imediatos nas práticas didático-pedagógicas.

"Hoje, temos uma prática educacional que parece não satisfazer nem ao magistério nem às famílias nem à sociedade civil como um todo. Menos ainda é algo que parece entusiasmar as novas gerações. Isso não é efeito de um movimento democratizante", contesta Eli Ghanem, professor de filosofia da educação da Universidade de São Paulo, autor de Educação escolar e democracia no Brasil (Autêntica, 2004). "O que temos é uma tradição autoritária e um processo de mutação social de caráter muito amplo.O magistério até hoje se debate entre adaptar-se a essas mudanças ou manter-se dentro de uma tradição autoritária. Agora, ou adotamos uma posição nostálgica, de recuperar a autoridade perdida, ou reconstruímos a escola em bases democráticas. Se não for assim, dificilmente iremos encontrar caminhos", propõe.

Teoria e prática
Não se trata de saudosismo, nem de reabilitar o que parecia funcionar no passado. Trata-se, antes, de compreender a diversidade de conceitos e suas aplicações, a começar pela visão de democracia. Existem ainda divergências inconciliáveis em torno de seu significado e, consequentemente, da noção de "ensino democrático".

Há muito a proposta de democratizar o ensino pela instituição de práticas educativas fundadas na liberdade do educando se apresenta como sedutora para os educadores. Mas não se democratiza o ensino reservando-o a uns poucos sob pretextos pedagógicos. "A democratização da educação é irrealizável intramuros, na cidadela pedagógica; é um processo exterior à escola, que toma a educação como uma variável social e não como simples variável pedagógica", registrou o educador José Mário Pires Azanha, em debate realizado ainda no final dos anos 70 sobre a democratização do ensino (Democratização do Ensino: vicissitudes da idéia no ensino paulista, julho de 1978)

Não podemos chamar de democrática uma escola que não seja pública e, como tal, de livre acesso. Sob essa ótica, a democratização de ensino equivale à expansão de oportunidades para todos. Esse é um ponto de partida, ainda que se tenha a clareza de que tal pressuposto não encontra amparo em outras conceituações.

Modernamente, não são poucos os que taxam de democráticas as propostas educacionais pautadas pelos ideais de liberdade e gestão participativa. Entendem que o caráter democrático é dado principalmente pela participação dos estudantes nas decisões a respeito da própria educação que se processa na escola. Alguns entendem mesmo que tanto mais democrática será a escola ou a prática educacional quanto maior for a participação desses estudantes nas decisões relativas à própria educação. É uma perspectiva que parece predominar entre os defensores do modelo. São escolas até há pouco tempo designadas de libertárias, progressistas, românticas e alternativas, que agora se articulam em torno da "nova" designação.

"Escola democrática é quase um slogan. Com o ruir do muro de Berlim, a democracia passou a ser um valor de referência para todas as instituições. Virou o tal modismo, a tal frase de efeito, desprovida de significado", critica Lisandre. "Afinal, o que é mesmo democracia? E o que é democracia na escola?", questiona a educadora.


A crise na educação
É nítido o reconhecimento de que a escola vai mal, a educação precarizou-se e o magistério há tempos carece de revalorização. Ao afastar-se de seu objetivo central - a transmissão do conhecimento - parece mesmo que a escola perdeu o foco.

Na intenção de melhor compreender o cenário, vale recorrer ao pensamento da filósofa Hannah Arendt, que, a partir da experiência americana do pós-guerra, refletiu sobre a crise na educação e a situou em uma crise maior, a crise da modernidade, marcada pela falência dos até então vigentes valores da autoridade e da tradição. Na nova conjuntura, a educação se daria pela eliminação do legado simbólico contido no ato educativo, imersa na convicção de que educar para o novo significa sepultar os métodos tradicionais. Nas palavras de Arendt, "o fio da tradição está rompido".

É através dessa perspectiva que se procura compreender outra crítica contundente: a psicologização da educação, fenômeno também referenciado na teoria arendtiana. Em um mundo que não está mais estruturado pela autoridade, nem mantido pela tradição, as raízes da falência educacional têm outras três vertentes. A primeira delas é descrita como o reconhecimento "de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças, autônomas, e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem". O segundo pressuposto identifica que "sob a influência da psicologia moderna e dos princípios do pragmatismo, a pedagogia transformou-se numa ciência do ensino em geral, a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada". E para fechar o tripé, Arendt nos apresenta a ideia da prática como valor máximo, expressando a visão de que "só é possível conhecermos e compreendermos aquilo que nós mesmos fizemos". Não basta mais o saber constituído, mas a prática, agora reverenciada.

Fracasso escolar
Os alunos com baixo rendimento escolar passaram a receber rótulos bem mais pomposos. Seriam acometidos de distúrbios psicopedagógicos ou déficits cognitivos, quem sabe até de um transtorno psicomotor ou vitimados por outra anomalia qualquer, que, por certo, ainda há de ser diagnosticada.

É ao incorporar esse repertório e um olhar pretensamente científico que a escola mostra outra herança do escolanovismo e sua crença nos saberes da psicologia do desenvolvimento e nas teorias interacionistas. O problema é que aquilo que se propunha como alternativa de superação é hoje em grande parte responsável pelo fracasso escolar, fazendo crescer as críticas à "psicologização" da educação, seja na prática docente, seja na fundamentação pedagógica. Àqueles que não alcançam os objetivos esperados, resta o rótulo de inadaptados, desajustados, portadores de transtornos de toda ordem.

"(...) a tese psicopedagógica da "adequação" não só faz, hoje, às vezes de passaporte educativo dos povos e/ou guardiã da "felicidade", da "criatividade" e da "inocência infantil", senão que também é considerada um instrumento de "humanização" e "democratização" das práticas educativas por oposição a um passado marcado pelo "autoritarismo" e o "sadismo pedagógico", registra Leandro de Lajonquière, da Faculdade de Educação da USP. "Nesse ponto, a atual e hegemônica psicologização do cotidiano escolar é, parcialmente, tributária do espírito da Escola Nova", sustenta.

Se na escola tradicional a disciplina e a autoridade eram instrumentos de conduta pedagógica, que caminhos percorrer hoje diante das dificuldades de aprendizagem e do insucesso escolar? É possível o trabalho com o aluno em dificuldades longe do estigma do fracasso e das condutas que reforçam a psicologização no interior da escola? Que propostas e alternativas nos oferecem as chamadas escolas democráticas?

O dilema pedagógico


Resgatar as origens e motivações das escolas democráticas implica compreender o cenário de mudanças que começa a se desenhar no campo da educação ainda no século 19. Desponta um sentimento de desilusão com a pedagogia tradicional, erigida a partir dos sistemas nacionais de ensino, criados sob inspiração do ideário iluminista e os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. Para transformar servos em cidadãos livres, a escola postulava o domínio de saberes legitimados pela ciência, em que a figura do professor é a autoridade máxima, que detém e transmite esses saberes. "Nessa perspectiva, os sistemas nacionais de instrução foram concebidos como imensas máquinas de transmissão do saber constituído", observa Ghanem.

As reações se multiplicam e, em meio às críticas à chamada escola tradicional, diferentes teorias sobre a prática pedagógica começam a aparecer, em várias partes do mundo. São experiências como as do suíço Johann Pestalozzi, o jardim da infância (kindergarten) de Frederich Froebel, o trabalho de Célestin Freinet e a Escola do Pragmatismo de John Dewey, entre tantas outras. A educação liberal burguesa, construtora da nacionalidade e da cidadania, está em xeque.

Aprender X Ensinar
As críticas à pedagogia tradicional terminam por impulsionar um amplo movimento reformista. No Brasil, sob a expressão do "escolanovismo" , assume sua representação máxima.

"Ensinamos crianças, não matérias", difundia o da Escola Nova, para quem a pedagogia tradicional, "verbalista e enciclopédica", reduzia o processo educativo exclusivamente à dimensão do saber. Se até então o professor era a figura central, com a responsabilidade de iluminar o caminho de seus discípulos e transformar súditos em cidadãos, agora se reivindica uma escola capaz de extrapolar a mera transmissão de conteúdos para valorizar os processos de aprendizagem.

Desloca-se o eixo - do ensinar para o aprender. E ao deslocar o eixo de uma pedagogia centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração filosófica, com contribuições crescentes da biologia e da psicologia, a educação começa a viver mudanças profundas.

Muda o papel do professor, mudam as relações de poder no interior da escola. "Os saberes, que eram dispostos segundo uma ordem lógica, passam a subordinar-se ao que se entendia por uma ordem psicológica, com uma conexão muito mais intencional entre a prática educacional e a idéia de interesse", descreve Ghanem. A aprendizagem não é mais vista como um processo atrelado ao treino, à retenção e memorização.

Na nova concepção, também não há lugar para a autoridade absoluta do professor, nem ele é mais o detentor do conhecimento. Ao invés da relação vertical professor-aluno, a pedagogia nova sai em defesa da assimetria nas relações em sala de aula. A própria geografia da escola está em debate.

"A feição da escola mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de paredes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e multicolorido", descreve Dermeval Saviani no livro Escola e democracia, um marco na crítica pedagógica ao escolanovismo.

Convite: evento INterACTION in Action


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Olá queridos,

nos dias 03, 04 e 05 de julho ocorrerá a convenção "Interaction in Action", organizada pela Associação de Professores de Inglês do Rio Grande do Sul (APIRS).
O evento será realizado no Prédio 40 da PUC/RS; quero destacar que teremos, nessa ocasião, uma conferência de abertura com o prof. Pedro Garcez e uma mesa debatedora com nossas colegas Gabriela Bulla e Paola Salimen.

Um abraço,
Carmen.