
Quase um século depois, Summerhill resiste ao tempo e é possivelmente o exemplo mais categórico de uma proposta educacional partilhada hoje por centenas de escolas espalhadas pelo mundo. Elas se autoproclamam democráticas e, em comum, defendem a participação de todos na gestão escolar, além de conferir ao aluno autonomia para gerir seu próprio currículo. A ideia é polêmica e ainda hoje suscita debates calorosos.
"A partir dessa proposta, a escola passou a se mobilizar em torno de questões que transcendem o compromisso com o aprender. Os desafios se avolumaram e, hoje, parece que a escola tem pouco tempo para ser apenas escola", diz Lisandre Maria Castello Branco, professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae.
"O diálogo que tipifica a educação democrática vem do espírito de Martin Buber, da antropologia filosófica; do romantismo de Rousseau e dos ensinamentos de John Dewey, combinando modelos inspirados em Carl Rogers; na Comunidade Justa defendida por Lawrence Kohlberg e na escola Summerhill, de Alexander Neil", sintetiza o israelense Yaacov Hecht, fundador e diretor do Instituto para Educação Democrática (The Institute for Democratic Education- IDE), com sede em Tel-Aviv.
É nesse caldeirão de novas propostas pedagógicas que se inscrevem também as práticas da Escola da Ponte, a bola da vez entre as boas referências mundiais da educação. Prova de que a designação de "democrática" não passa de um rótulo a abrigar conotações teóricas e práticas bem distintas. Há muitas faces entre as proclamadas e apontadas como tal, que não se opõem tão radicalmente à pedagogia tradicional.
Mas o que importa saber é uma questão central: ao mudar o eixo - do ensinar para o aprender, da centralidade no professor à centralidade no aluno - teria a escola desvendado as melhores práticas pedagógicas? Estaria o acesso ao conhecimento realmente mais democrático?
A infiltração de novas ideias no cotidiano escolar é o ponto de partida para um processo considerado por muitos como o esvaziamento do ato educativo, compreendido aqui como a transmissão do legado cultural acumulado pela humanidade.
"(...) tais consequências foram mais negativas que positivas uma vez que, provocando o afrouxamento da disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos, acabou a absorção do escolanovismo pelos professores por rebaixar o nível de ensino destinado às camadas populares, as quais muito frequentemente têm na escola o único meio de acesso ao conhecimento elaborado".
Polêmica, a crítica formulada por Saviani ainda hoje divide os meios educacionais. Há quem julgue difícil afirmar, mesmo com os dados de pesquisa existentes, em que grau e em que extensão o "escolanovismo" (e suas várias derivações) penetrou ou penetra na cabeça e nas práticas dos professores que atuam na linha de frente do sistema escolar brasileiro. A visão chega a parecer reducionista. Para explicar o fracasso da escola pública e as raízes do aligeiramento e rebaixamento do nível de ensino, melhor parece apoiar-se em análises mais globalizantes. Significa, por exemplo, considerar os objetivos postulados para a escola, o financiamento público da educação, o sistema de formação, a remuneração e as condições de trabalho dos professores.
Há muito a proposta de democratizar o ensino pela instituição de práticas educativas fundadas na liberdade do educando se apresenta como sedutora para os educadores. Mas não se democratiza o ensino reservando-o a uns poucos sob pretextos pedagógicos. "A democratização da educação é irrealizável intramuros, na cidadela pedagógica; é um processo exterior à escola, que toma a educação como uma variável social e não como simples variável pedagógica", registrou o educador José Mário Pires Azanha, em debate realizado ainda no final dos anos 70 sobre a democratização do ensino (Democratização do Ensino: vicissitudes da idéia no ensino paulista, julho de 1978)
Não podemos chamar de democrática uma escola que não seja pública e, como tal, de livre acesso. Sob essa ótica, a democratização de ensino equivale à expansão de oportunidades para todos. Esse é um ponto de partida, ainda que se tenha a clareza de que tal pressuposto não encontra amparo em outras conceituações.
Modernamente, não são poucos os que taxam de democráticas as propostas educacionais pautadas pelos ideais de liberdade e gestão participativa. Entendem que o caráter democrático é dado principalmente pela participação dos estudantes nas decisões a respeito da própria educação que se processa na escola. Alguns entendem mesmo que tanto mais democrática será a escola ou a prática educacional quanto maior for a participação desses estudantes nas decisões relativas à própria educação. É uma perspectiva que parece predominar entre os defensores do modelo. São escolas até há pouco tempo designadas de libertárias, progressistas, românticas e alternativas, que agora se articulam em torno da "nova" designação.
"Escola democrática é quase um slogan. Com o ruir do muro de Berlim, a democracia passou a ser um valor de referência para todas as instituições. Virou o tal modismo, a tal frase de efeito, desprovida de significado", critica Lisandre. "Afinal, o que é mesmo democracia? E o que é democracia na escola?", questiona a educadora.
Na intenção de melhor compreender o cenário, vale recorrer ao pensamento da filósofa Hannah Arendt, que, a partir da experiência americana do pós-guerra, refletiu sobre a crise na educação e a situou em uma crise maior, a crise da modernidade, marcada pela falência dos até então vigentes valores da autoridade e da tradição. Na nova conjuntura, a educação se daria pela eliminação do legado simbólico contido no ato educativo, imersa na convicção de que educar para o novo significa sepultar os métodos tradicionais. Nas palavras de Arendt, "o fio da tradição está rompido".
É através dessa perspectiva que se procura compreender outra crítica contundente: a psicologização da educação, fenômeno também referenciado na teoria arendtiana. Em um mundo que não está mais estruturado pela autoridade, nem mantido pela tradição, as raízes da falência educacional têm outras três vertentes. A primeira delas é descrita como o reconhecimento "de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças, autônomas, e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem". O segundo pressuposto identifica que "sob a influência da psicologia moderna e dos princípios do pragmatismo, a pedagogia transformou-se numa ciência do ensino em geral, a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada". E para fechar o tripé, Arendt nos apresenta a ideia da prática como valor máximo, expressando a visão de que "só é possível conhecermos e compreendermos aquilo que nós mesmos fizemos". Não basta mais o saber constituído, mas a prática, agora reverenciada.
Se na escola tradicional a disciplina e a autoridade eram instrumentos de conduta pedagógica, que caminhos percorrer hoje diante das dificuldades de aprendizagem e do insucesso escolar? É possível o trabalho com o aluno em dificuldades longe do estigma do fracasso e das condutas que reforçam a psicologização no interior da escola? Que propostas e alternativas nos oferecem as chamadas escolas democráticas?
O dilema pedagógico |
As reações se multiplicam e, em meio às críticas à chamada escola tradicional, diferentes teorias sobre a prática pedagógica começam a aparecer, em várias partes do mundo. São experiências como as do suíço Johann Pestalozzi, o jardim da infância (kindergarten) de Frederich Froebel, o trabalho de Célestin Freinet e a Escola do Pragmatismo de John Dewey, entre tantas outras. A educação liberal burguesa, construtora da nacionalidade e da cidadania, está em xeque. Aprender X Ensinar "Ensinamos crianças, não matérias", difundia o da Escola Nova, para quem a pedagogia tradicional, "verbalista e enciclopédica", reduzia o processo educativo exclusivamente à dimensão do saber. Se até então o professor era a figura central, com a responsabilidade de iluminar o caminho de seus discípulos e transformar súditos em cidadãos, agora se reivindica uma escola capaz de extrapolar a mera transmissão de conteúdos para valorizar os processos de aprendizagem. Desloca-se o eixo - do ensinar para o aprender. E ao deslocar o eixo de uma pedagogia centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração filosófica, com contribuições crescentes da biologia e da psicologia, a educação começa a viver mudanças profundas. Muda o papel do professor, mudam as relações de poder no interior da escola. "Os saberes, que eram dispostos segundo uma ordem lógica, passam a subordinar-se ao que se entendia por uma ordem psicológica, com uma conexão muito mais intencional entre a prática educacional e a idéia de interesse", descreve Ghanem. A aprendizagem não é mais vista como um processo atrelado ao treino, à retenção e memorização. Na nova concepção, também não há lugar para a autoridade absoluta do professor, nem ele é mais o detentor do conhecimento. Ao invés da relação vertical professor-aluno, a pedagogia nova sai em defesa da assimetria nas relações em sala de aula. A própria geografia da escola está em debate. "A feição da escola mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de paredes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e multicolorido", descreve Dermeval Saviani no livro Escola e democracia, um marco na crítica pedagógica ao escolanovismo. |